"Mesmo as águas mais turvas e turbulentas têm seus dias de água límpida e plácida. (...) olhava pela janela o dia ensolarado, iluminando as ruas cheias de gente correndo, automóveis, (...), prédios esguios e esbeltos, erguidos em adoração à altivez de estruturas rumo aos céus. Sol escaldante, sobre todas as cabeças, aquecendo a matéria e tentando assim aquecer a alma, tão exato que diante dos seus olhos, quase-certeza de que não será necessário esperar muito até ver tudo aquilo começar a derreter, como sorvete em mãos de criança pequena que não consegue tomá-lo a tempo. Olhava então, esperando o momento que acontecesse, diante de olhares estupefatos, também derretendo com o calor, enquanto ela vitoriosa, últimos pensamentos derretendo e escorrendo pelo chão, estava certa.
Universo de cor e de luz, impressões fortes de um mundo frágil, na amplitude restrita da sua visão. Alinhamento perfeito de células e pigmentos recebendo energia luminosa e pequeninas partículas, matéria quase inexistente, percepção de um mundo material baseado nos sentidos mais básicos, pequena capacidade humana diante de tantas sensações ainda desconhecidas, processos e mecanismos ainda passíveis de descoberta. Mas impressões também se desfazem, por mais fortes que sejam, não são certezas, por mais que as marcas deixadas convençam a mente da sua exatidão, e antes do que se possa imaginar, foram-se embora, quem sabe causar seus impactos em outros horizontes, distantes, perdidos, na imensidão azulada, ensolarada, nublada, acinzentada, chuvosa, branca, alva, negra, violeta-azul-escuro-estrelada-ou-não...
Foram-se as impressões e ela ficou lá, sentada, olhando para fora, o mundo agora voltara a ser mundo, coisa que a gente vê o dia todo, todo dia, tudo igual, impressões comuns, luz impressa no globo ocular, calor impresso na pele, sons abafados impressos nos ouvidos, cheiro de ar-condicionado velho impresso nas narinas, gosto de café-de-trabalho-para-não-sentir-sono impresso na boca... Na mente, distorção temporal dando nova percepção à dimensão espacial rotineira e a si próprio, mesmo que brevemente. Mas a brevidade nada mais é do que outra impressão, como tantas mais, e se agora ficou a impressão de sensações retidas em tempo curto, no exato momento em que elas começaram a transbordar, copo cheio-corpo cheio, a impressão era de eternidade, infinitude, total-absoluta-certeza-plena infindável.
Continuou lá, sentada, olhando para fora, como se estivesse esperando tudo aquilo retornar, como se estivesse em um intervalo curto para descanso do corpo, e a qualquer momento tudo voltasse... E assim, quem sabe, ela voltasse também..."