terça-feira, outubro 31, 2006

Da saudade de você...

Das horas estabelecidas como um refúgio da realidade rotineira.
Das perguntas e das respostas sem sentido.
Dos olhares cruzados.
Do contorno do rosto.
Do dormir abraçado.
Das noites mal dormidas.
Do silêncio ensurdecedor.
Das promessas não cumpridas.
Da distância iminente.
Da ausência presente.
Do retorno esperado.
Da presença ausente.
Do esquecimento forçado.
Da insustentável leveza do ser.
Do que não existe mais.
Da persistência da memória...
... quando tudo o que se queria era esquecer...

segunda-feira, outubro 30, 2006

Condicional

Quis nunca te perder
Tanto que demais
Via em tudo céu
Fiz de tudo cais
Dei-te pra ancorar
Doces deletérios

E quis ter os pés no chão
Tanto eu abri mão
Que hoje eu entendi
Sonho não se dá
É botão de flor
O sabor de fel
É de cortar

Eu sei é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim

Do que eu preciso é lembrar me ver
Antes de te ter e de ser teu, muito bem

Quis nunca te ganhar
Tanto que forjei
Asas nos teus pés
Ondas pra levar
Deixo desvendar
Todos os mistérios

Sei, tanto te soltei
Que você me quis
Em todo o lugar
Li em cada olhar
Quanta intenção
Eu vivia preso

Eu sei é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim
Do que eu preciso é lembrar, me ver
Antes de te ter e de ser teu
O que eu queria, o que eu fazia, o que mais?
E alguma coisa a gente tem que amar
Mas o que, não sei mais

Os dias que eu me vejo só são dias
Que eu me encontro mais
e mesmo assim
Eu sei também existe alguém pra me libertar



Los Hermanos
Composição: Rodrigo Amarante

domingo, outubro 29, 2006

Da série "porque a gente não aprende, a gente se acostuma"

Pois É


Pois é, não deu
Deixa assim como está sereno
Pois é de Deus
Tudo aquilo que não se pode ver
E ao amanhã a gente não diz
E ao coração que teima em bater
avisa que é de se entregar o viver


Pois é, até
Onde o destino não previu
Sei mas atrás vou até onde eu consegui
Deixa o amanhã e a gente sorri
Que o coração já quer descansar
Clareia minha vida, amor, no olhar




Los Hermanos
Composição: Marcelo Camelo



Em consonância com meu amigo Mocho no post:

A insustentabilidade do ser

e a pergunta que não quer calar...

"Então porque é que custa tanto perder algo?"

sábado, outubro 28, 2006

E um bom fim de semana para vocês!!!

"Great view but be careful of that first step"

  • by newfoundland_rcmp's
  • sexta-feira, outubro 27, 2006

    Da série 'Clarice'...

    "Impossível explicar. Afastava-se aos poucos daquela zona onde as coisas têm forma física e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na região líquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas vagas e frescas como as da madrugada." ( Perto do coração selvagem, p.194)
    "Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento..."

    quinta-feira, outubro 26, 2006

    Da série "prenúncios"...

    Dois Barcos


    Quem bater primeira dobra do mar
    Dá de lá bandeira qualquer
    Aponta pra fé e rema

    É, pode ser que a maré não vire
    Pode ser do vento vir contra o cais
    E se já não sinto teus sinais
    Pode ser da vida acostumar


    Será, Morena?
    Sobre estar só, eu sei

    Nos mares por onde andei
    Devagar dedicou-se, mas
    O acaso a se esconder
    E agora o amanhã, cadê?

    Doce o mar, perdeu no meu cantar (x 2)

    Só eu sei
    Nos mares por onde andei
    Devagar dedicou-se, mas
    O acaso a se esconder
    E agora o amanhã, cadê?



    Los Hermanos
    Composição: Marcelo Camelo

    quarta-feira, outubro 25, 2006

    Santa Chuva

    Vai chover de novo,
    deu na tv que o povo já se cansou de tanto o céu desabar,
    E pede a um santo daqui que reza a ajuda de Deus,
    mas nada pode fazer se a chuva quer é trazer você pra mim,

    Vem cá que tá me dando uma vontade de chorar,
    Não faz assim, não vá pra lá, meu coração vai se entregar à tempestade.

    Quem é você pra me chamar aqui se nada aconteceu?
    Me diz, foi só amor ou medo de ficar sozinho outra vez?

    Cadê aquela outra mulher?
    Você me parecia tão bem,

    A chuva já passou por aqui, eu mesma que cuidei de secar,

    Quem foi que te ensinou a rezar?
    Que santo vai brigar por você?
    Que povo aprova o que você fez?
    Devolve aquela minha tv que eu vou de vez,

    Não há porque chorar por um amor que já morreu,
    Deixa pra lá, eu vou, adeus.
    Meu coração já se cansou de falsidade.



    Los Hermanos
    Composição: Marcelo Camelo(Gravada por Maria Rita)

    terça-feira, outubro 24, 2006

    Não me tomes...

    "Não me tomes como ingênua, nem como ignorante na vivência mundana dada a juventude estampada em minha face e em minha carne ainda fresca. Não me tomes como incapaz de perceber que sou um incômodo diante do peso dos anos sobre seus ombros. Não me tomes como a donzela indefesa que não pode dar sua cara a tapa, não é capaz de ditar o rumo da sua vida e nem sequer sabe o que está a fazer. Não me tomes como estúpida, fútil ou volúvel, pois as máscaras foram criadas sem preconceitos para que qualquer um possa usá-las, independente do que escondem por baixo. Não me tomes como passível de desculpas inventadas, de mentiras, de falsidade, de promessas vãs e de ser enganada como criança tola. Não me tomes como pura, fraca, delicada, frágil e insuficiente nas minhas idéias e ideais, pois as bases que formam a suavidade do diamante são inquebráveis diante de qualquer força bruta, e embora possa ser lapidado sua estrutura permanece a mesma. Não me tomes como um infante mimado, como a beleza superficial dos primeiros anos, nem sequer a efemeridade das paixões humanas, pois criada e estabelecida sob a sorte dos signos sou acalentada pela certeza da eternidade fugaz da realidade insustentável aos seus olhos."

    segunda-feira, outubro 23, 2006

  • Achava que não podia ser magoada
  • Achava que não podia ser magoada;
    achava que com certeza era
    imune ao sofrimento —
    imune às dores do espírito
    ou à agonia.

    Meu mundo tinha o calor do sol de abril
    Meus pensamentos, salpicados de verde e ouro.
    Minha alma em êxtase, ainda assim
    conheceu a dor suave e aguda que só o prazer
    pode conter.

    Minha alma planava sobre as gaivotas
    que, ofegantes, tão alto se lançando,
    lá no topo pareciam roçar suas asas
    farfalhantes no teto azul
    do céu.

    (Como é frágil o coração humano —
    um latejar, um frêmito —
    um frágil, luzente instrumento
    de cristal que chora
    ou canta.)

    Então de súbito meu mundo escureceu
    E as trevas encobriram minha alegria.
    Restou uma ausência triste e doída
    Onde mãos sem cuidado tocaram
    e destruíram

    minha teia prateada de felicidade.
    As mãos estacaram, atônitas.
    Mãos que me amavam, choraram ao ver
    os destroços do meu firma-
    mento.

    (Como é frágil o coração humano —
    espelhado poço de pensamentos.
    Tão profundo e trêmulo instrumento
    de vidro, que canta
    ou chora.)


    (tradução de Mônica Magnani Monte)


    Sylvia Plath

    domingo, outubro 22, 2006

    Meu Rio...


    por Yann Arthus-Bertrand


    E um bom domingo para todos!!!

    sábado, outubro 21, 2006

    O livro de cabeceira

    "36.

    (...)
    Não dá para me enganar e escapar à constatação brutal de que não importa quanto você se mostre entusiasmada, não importa a certeza de que caráter é destino, nada é real, passado ou futuro, quando a gente fica sozinha no quarto com o relógio tiquetaqueando alto no falso brilho ilusório da luz elétrica. E se você não tem passado ou futuro, que no final das contas são os elementos que formam o presente todo, então é bem capaz de descartar a casca vazia do presente e cometer suicídio. Mas a massa fria entranhada em meu crânio raciocina e papagaia, 'Penso, logo existo' (...). Para que serve a boa aparência? Garantir segurança temporária? De que adianta o cérebro? Para dizer apenas ' Eu vivi e compreendi'?"
    Julho de 1950 - Julho de 1953
    Os diários de Sylvia Plath 1950-1962

    sexta-feira, outubro 20, 2006

    Da pequenez...

    "Adorava esses dias em que conseguia fugir da normalidade e mergulhar em um universo só seu, onde ninguém conseguia encontrar e perturbar a confusão organizada dela. Só não gostava da sua pequenez, que não permitia que ela pudesse extrair tudo o que poderia ser extraído de tamanha oportunidade. Tanta coisa era perdida, e ela não teria essa chance novamente. Afinal, quais seriam as probabilidades de um mesmo momento acontecer duas vezes, sob as mesmas circunstâncias, contendo o mesmo conjunto de pensamentos, diante de uma mente focada justamente para tal singularidade? Perdia completamente o rumo diante disso: porque toda vez que tinha uma divagação interessante, não possuía recurso para deixá-la registrada, via então essa idéia dispersando no ar novamente e a certeza de que havia perdido mais uma, sem nada a ser feito. A única coisa que ficava eram as impressões, suavemente marcadas nela, apenas a vaga noção de que algo bom passara por ela, e só... Por isso dizia para si que sua vida era feita de impressões... E tudo que vinha dela eram impressões... Ninguém era capaz de senti-la com muita intensidade... Ela passava pelos outros, impossível de ser contida em um espaço pequeno, até o espaço de seu próprio corpo não era capaz de retê-la... Assim ela vivia, como uma impressão levemente marcada na memória dos outros, que sabe que ela está ou já esteve lá, mas não consegue distinguir onde começa e onde termina, de onde veio, para onde vai... Sem forma, como uma imagem difusa, confusa, esfumaçada... Uma impressão e nada mais...
    (...)
    Ela chegava a achar fascinante, algumas vezes... Esse desprendimento das coisas banais, que a maioria das pessoas consideram essenciais, mas que para ela eram dispensáveis... Se prendia nos detalhes, e tentava em seguida formar a imagem completa... Perdia-se então nesse processo...Na verdade perdia-se em quase tudo... Uma facilidade de ir de um pensamento a outro e se manter em todos e em nenhum ao mesmo tempo. Era uma contradição por si só..."

    quinta-feira, outubro 19, 2006

    Vinte e dois...

    "E cumpre-se mais uma maldição, mais uma profecia jamais dita, mas sempre presente, à espreita, esperando... Esperando o momento do seu surgimento, para brotar da terra seca e escorrer da escuridão invisível... Escorrendo como sangue seco, como suor latejante, como lágrima impura, pulsando como um coração pútrido... Pútrido e profético, pulsando como uma morte anunciada... Calada...
    Anoitece mais um dia e mais uma vida, em mais uma vida. Anoitece e chove... Mas é chuva de vida, de vida que chove... Chove sonhos e eles se perdem... Se perdem na terra seca, infértil, se perdem na vida que chove, que chove porque não chora, porque é vida seca, e seca tudo ao seu redor, até a chuva, até os sonhos... Sonhos secos em uma vida infértil...
    De longe escuta-se um grito abafado, grito inaudível, pois não passa de um sussurro... Um pedido... Não um qualquer, um desses de ajuda, de salvação... Pede-se a perdição... Deixar-se perder em si... Sem a pretensão de se achar assim... Perder-se e deixar-se assim... Perdido... Um pedido perdido... No meio do começo, no meio do fim, no meio do meio, do meio do todo, do meio do nada... Um grito, tão longínquo que escuta-se vindo de dentro... E de dentro, findo...
    Ressoam no infinito luzes insípidas, chorosas, mudas... E daqui nada se vê... Nada se ouve... Sente-se, mas não vem do infinito... Sente-se o que nasce e morre aqui, nesse espaço fechado, aberto para o abismo, abismo do tempo, o presente passado, o passado futuro e o futuro presente... Abismo de uma única mente... Atemporal... Pesadamente finita no intervalo de uma vida... Advinda da morte... Da morte que pulsa e lateja, que chora e escorre como chuva sonhada no anoitecer da terra... Da terra que grita e se perde, que ouve e vê como luz impura no pedido da vida... Da vida que espera e brota, que abafa-se e sussurra, como sangue infinito na escuridão de dentro... E de dentro, finda..."
    Em 07 de novembro de 2005.

    quarta-feira, outubro 18, 2006

    Do (des)acostumar...

    "... O ar saturado penetra pelas frestas, adentra pelos poros e respira-se um calor abafado como as idéias que tentam se desvencilhar da mente abarrotada de imagens, sons, gostos, cheiros, sensações... Tudo é artificial do lado de dentro e de fora: o leve vento, a fraca luminosidade, os pensamentos, as palavras. Perdeu-se mais do que tempo, palavras, costumes, incertezas, vontades, desejos, sonhos... Perdeu-se um pedaço, uma parte, um todo, conseqüência de si, autoflagelação insensata.
    Aos poucos acostuma-se... E é quase normal... A rotina, o cotidiano, absorvendo tudo que não se encaixa nos padrões de caixas lisas e perfeitas montadas umas em cima das outras, monotonia... Molda-se as aberrações, as deformidades, os imperfeitos, tornando-os quadrados, linhas retas, fechados em si... Há muito tempo para o mundo, mas ele escorre muito rápido... Acorda-se..."

    terça-feira, outubro 17, 2006

    Da necessidade das pequenas coisas...

    "Sentiu a necessidade das pequenas coisas. Saiu de casa e vagou pelas ruas, buscando o que ninguém enxergava. Ficou retida em frente a um parque onde as crianças corriam criando mundos e brincadeiras sem começo, meio ou fim. Buscava a si, perdida em meio ao mundo. Procurou o dia todo, até o cair da noite. Voltou para casa e, ao entrar tristemente porta adentro, deparou-se consigo mesma, presente nos objetos que compunham sua sala, seu quarto, suas estantes. Lá estava ela, perdida nas pequenas coisas que enchiam e preenchiam sua casa e esvaziavam sua mente. Sentiu o cheiro e o toque, pedaços da sua vida observando sua sobrevida e sugando a sanidade que nunca morou ali... Era ela afinal, tão pequena, diante do resto... Percebera que ao sentir a necessidade das pequenas coisas, sentia a necessidade de se sentir... Sentia a necessidade de si..."

    segunda-feira, outubro 16, 2006

    Da presença da ausência...

    "Manifesto a dor que na verdade não sinto, causada pelas feridas que a vida não causou. Sangram apenas, meus sonhos, minhas idéias, meus pensamentos, meus ideais, meus sentimentos, que também pertencem ao mundo. Sangram apenas, e meu corpo continua inerte, ainda jovial, perdido e paralisado em meio a tanto líquido que escorre de mim, um sangue salgado, pois se mistura com as lágrimas que não ousei chorar. Até que meu corpo reflita os anos perdidos com o escorrer da vida, que nada mais é do que essa massa amorfa de desejos e vontades, e caminhe lentamente e tolamente triunfante para a debilidade que impede o todo de pensar."

    Em 29 de junho de 2005.

    domingo, outubro 15, 2006

    07 de agosto de 2005

    "(...) Sei que provavelmente esse estado, meio ativo, meio sonolento, um tanto quanto intuitivo, mais do que subjetivo, não vai se manter durante muito tempo. Geralmente ele ressurge após longos períodos de inserção na obscuridade do mundo real e sua rotina sufocante seguido de um pequeno instante de lucidez, causado por um livro, um sorriso, uma palavra, um sonho, uma saudade distante do tempo e do espaço, presa apenas pelo fio de luz da memória formado através de uma lembrança que surge inocentemente com o suave roçar da nostalgia pairando sobre nossos corpos e impregnando o ar que respiramos com o leve cheiro das noites sem fim que povoamos de sonhos e desejos..."

    sábado, outubro 14, 2006

  • Da subjetividade
  • 02 de abril de 2005
    "Mas até o céu tem o inferno contido no seu âmago, assim como o inferno tem o paraíso contido na sua essência..."

    sexta-feira, outubro 13, 2006

    Do olhar...

    "Mesmo as águas mais turvas e turbulentas têm seus dias de água límpida e plácida. (...) olhava pela janela o dia ensolarado, iluminando as ruas cheias de gente correndo, automóveis, (...), prédios esguios e esbeltos, erguidos em adoração à altivez de estruturas rumo aos céus. Sol escaldante, sobre todas as cabeças, aquecendo a matéria e tentando assim aquecer a alma, tão exato que diante dos seus olhos, quase-certeza de que não será necessário esperar muito até ver tudo aquilo começar a derreter, como sorvete em mãos de criança pequena que não consegue tomá-lo a tempo. Olhava então, esperando o momento que acontecesse, diante de olhares estupefatos, também derretendo com o calor, enquanto ela vitoriosa, últimos pensamentos derretendo e escorrendo pelo chão, estava certa.
    Universo de cor e de luz, impressões fortes de um mundo frágil, na amplitude restrita da sua visão. Alinhamento perfeito de células e pigmentos recebendo energia luminosa e pequeninas partículas, matéria quase inexistente, percepção de um mundo material baseado nos sentidos mais básicos, pequena capacidade humana diante de tantas sensações ainda desconhecidas, processos e mecanismos ainda passíveis de descoberta. Mas impressões também se desfazem, por mais fortes que sejam, não são certezas, por mais que as marcas deixadas convençam a mente da sua exatidão, e antes do que se possa imaginar, foram-se embora, quem sabe causar seus impactos em outros horizontes, distantes, perdidos, na imensidão azulada, ensolarada, nublada, acinzentada, chuvosa, branca, alva, negra, violeta-azul-escuro-estrelada-ou-não...
    Foram-se as impressões e ela ficou lá, sentada, olhando para fora, o mundo agora voltara a ser mundo, coisa que a gente vê o dia todo, todo dia, tudo igual, impressões comuns, luz impressa no globo ocular, calor impresso na pele, sons abafados impressos nos ouvidos, cheiro de ar-condicionado velho impresso nas narinas, gosto de café-de-trabalho-para-não-sentir-sono impresso na boca... Na mente, distorção temporal dando nova percepção à dimensão espacial rotineira e a si próprio, mesmo que brevemente. Mas a brevidade nada mais é do que outra impressão, como tantas mais, e se agora ficou a impressão de sensações retidas em tempo curto, no exato momento em que elas começaram a transbordar, copo cheio-corpo cheio, a impressão era de eternidade, infinitude, total-absoluta-certeza-plena infindável.
    Continuou lá, sentada, olhando para fora, como se estivesse esperando tudo aquilo retornar, como se estivesse em um intervalo curto para descanso do corpo, e a qualquer momento tudo voltasse... E assim, quem sabe, ela voltasse também..."

    quarta-feira, outubro 11, 2006

    Das lembranças...

    "Ao final do mês ela já havia ido embora, e tudo o que restou da sua presença foi seu cheiro impregnado na sua pele, fazendo companhia aos objetos esquecidos durante a pressa da partida: algumas fotos, perdidas nas gavetas, uma ou outra lembrança de viagens feitas juntos, e a memória persistente, trazendo à tona o tempo compartilhado.
    (...) com o desgaste que consumia a convivência deles, ela sentia a vontade cada vez mais incontrolável de partir. E partiu. Deixando para trás toda a inércia que regia aquela relação e a vida de ambos. Deixando ele, perdido em si e incapaz de assumir suas prioridades e vontades. Deixando também, e era o que mais doía nela, um pedaço de si, arrancado das suas entranhas por ele, com seu olhar, seus beijos, seu toque e suas promessas vãs.
    Tinha imensa facilidade de recomeçar novas amizades, novo emprego, nova cidade, novas expectativas para pensamentos velhos. Não sofreu com tais mudanças, mas sofreu calada a ausência. A ausência dele, dormindo ao seu lado, do seu cheiro, das conversas despretensiosas, do choro contido diante do abismo em que se viam cair, do choro incontido e velado que a distância crescente entre eles lhe causava, mas que ao final de mais um dia ouvia a porta se abrir e ele voltar. Sofreu calada a certeza de que não teria essa vida novamente. Um misto de alívio e tristeza, o fardo tirado de suas costas que levava junto os momentos mais pequenos e duradouros. O olhar terno, o carinho inesperado, o sorriso mudo, o beijo roubado. Tudo aquilo que não voltaria mais, todos os instantes perdidos na imensidão da memória."

    terça-feira, outubro 10, 2006

    Da possibilidade...

    "Olhou para rua (...) aquele dia para ela (...) era dia (...) de sentir os bons ventos que sopravam em sua vida. Não gostava de criar expectativas, e o ânimo que surgia dela era da possibilidade latente, mesmo que não se concretizasse, advinda da vida vivida sobre e sob as dificuldades dinamicamente diárias e constantemente contínuas. Era da esperança de que apesar de nadar contra a correnteza, existiam ventos favoráveis que sopravam quando os braços cansados não suportavam mais o peso das águas.
    Pensou nele, na saudade que sentia dele, e lá, escondido dentro dela, debaixo do orgulho, sonhou acordada que seria bom se tivesse acordado assim, leve, porque ele, lá longe, havia pensado nela e sentido sua falta. Voltou a si e pensou que talvez já fosse capaz de esquecê-lo, naquela forma juvenil, e passar a pensar nele como uma lembrança. Lembrança de um período bom da sua vida, como todos os outros, porque sempre há algo de bom a se guardar, mesmo da época mais triste. Resolveu deixar esse pensamento de lado. Talvez voltassem a se encontrar um dia, e talvez, aí sim, estivessem prontos um para o outro. Talvez ao se reencontrarem, perceberiam que já não havia nada a ser retomado, que o passado vivido em comum havia consumido a si próprio, mergulhado dentro de si, implodido e findo, restando somente um sorriso nostálgico. Ou talvez não se veriam jamais e assim ficaria, cabendo a cada um guardar na memória a lembrança que quisesse ou que conviesse.
    Deixou então aquele pensamento, exatamente naquele ponto, da incapacidade de prever o rumo da vida, e da necessidade de evitar pensar sobre a possibilidade contida em fases findas da vida. Se tivesse sido diferente...
    (...) Diante de tanta potencialidade, do mundo e de si, desejou apenas que não estivesse errada..."

    segunda-feira, outubro 09, 2006

    Do acordar...

    "Acordara cedo e ao abrir a janela da sala para deixar o primeiro ar da manhã entrar depois de uma noite saturada, (...) sentiu o frescor do ar matinal entrar pelos seus pulmões, e como se fosse possível, esse mesmo ar dava vida ao seu corpo cansado e sôfrego. Era ar puro, (...) era brisa forte e persistente, presente, com a leveza de um sopro materno sobre o machucado do filho, era ar que trazia consigo a bonança tão esperada para os tempos de tempestade que assolava sua existência. Mesmo que fosse breve, curto, seu sossego daria forças para seguir quando o caos se fizesse a palavra de ordem mais uma vez. Inspirou com toda a vontade que cabia em seu peito frágil aquele ar, e para sua surpresa, o que lhe rendeu um belo sorriso para iniciar mais um dia, aquele cheiro era-lhe familiar. Era cheiro de mar... A primeira reação, de descrença, fruto da lógica sempre imperante, devido a grande distância em que se encontrava de suas águas. Inspirou mais uma vez, e outra, seu cheiro já se misturava ao seu corpo, correndo por suas veias, invadindo seu ser, resultando em... Inspiração... Deixou-se levar, sim, era cheiro de mar, tornando seu princípio de dia mais prazeroso, mais vívido, (...). Como no arremate de uma conclusão óbvia, diante das provas existenciais de tal afirmativa, pensou alto: Era seu cheiro... Era o cheiro dela, que cheirava a mar, mar de sonhos, de sentimentos, pensamentos, sensações, impressões, vontades, desejos, mesmo que reclusos no recôndito do seu olhar distante, mar de água e de sal, de estrela-do-mar encontrada na praia e levada de volta a seu lar, mar de alma, banhada de lágrimas, mar de si..."

    sexta-feira, outubro 06, 2006

    Luz e sombra...

    "Formas nuas bailavam em toda a extensão da sala e de seu quarto, criando sombras tênues, trêmulas, mas persistentes, dançando ao ritmo das estrelas que forravam o teto azul-lilás-aveludado do mundo. Dançavam e criavam uma atmosfera misteriosa, movimentos delicados, como bailarinos em noite de estréia, de perto é possível sentir a tensão criada entre corpo e o ar, com o tremor dos músculos tensionados devido à emoção de momento tão esperado, previsto, revisto, de longe os movimentos perfeitos, leves, corpos flutuantes, levitando, complementação entre música e dança, continuidade entre bailarinos e melodia, entre o que é ouvido e o que é visto, quase impossível diferenciar de onde surge a sinfonia e de onde surge a dinâmica da matéria.
    Ela penetrava naquela cena surreal, ela, imagem estática em meio as formas em constante movimento, e como em uma pintura, olha-se novamente, vê-se ela, alma, dançando em meio as figuras agora secundárias, ela, regendo a sinfonia maior, seus passos sendo seguidos pelas outras imagens, agora opacas, e ela, luz própria, surgindo dela e iluminando todo o ambiente. Toda a cena, a imagem, a pintura, criada para colocá-la em foco, ponto convergente, eixo, estrelas girando ao seu redor, centro cuja gravidade atrai a matéria próxima.
    (...)
    As sombras e a luminosidade indireta criada com o balé surrealista avançaram a noite toda, embriagaram-se com a beleza da negritude celeste e da alvura da lua nova que iluminava a escuridão do céu com seu brilho pálido, e recusaram-se a adormecer diante da possibilidade de tal encontro. O sono chegou somente com o amanhecer do dia, as estrelas se escondendo diante de fonte mais luminosa, o céu tornando-se mais claro e dando o ritmo da vida que voltava ao movimento habitual. Dormiu na sua cama ainda com as almofadas dando um ar de polidez ilusório, e em toda a extensão da sala e de seu quarto, extinguiam-se as últimas luzes das velas que iluminaram mais uma de suas noites solitárias, apagaram-se logo após o seu desfalecimento, como se tivessem percebido a ausência do seu centro de gravidade, e o balé tivesse se tornado apresentação desnecessária, sem sua melodia regente..."

    quinta-feira, outubro 05, 2006

    Do recomeçar...

    "Era tempo de chuva e de silêncio... Apenas o som da chuva tocando aquela matéria fosca, triste. Apenas as lágrimas do mundo tentando abraçá-lo e dar-lhe o conforto do encontro entre lágrimas e mundo, sofrimento e dor. Água pura, tentando lavar as almas de corpos impuros que buscam o quê? Silêncio para escutar mais do que as palavras vazias que enchem a atmosfera de ilusões tolas, para não escutar promessas vãs, para não dizê-las, para ver apenas a chuva caindo, para respirar o ar úmido, o cheiro de chuva que emana dos corpos, para escutar o mundo chorando, e esquecer o sofrimento egoísta de cada um. Era tempo de silêncio para compreender a necessidade, sempre urgente, de recomeçar...
    (...)
    A chuva lá fora já havia estiado, e pouco restava da sua presença. O sol já havia voltado a brilhar, abrindo pedacinhos azuis e raios de luz por entre as nuvens cinzentas. Mas ali dentro, a chuva continuava a cair, na esperança de levar consigo todas as ilusões criadas infantilmente. E chovia, chovia..."

    quarta-feira, outubro 04, 2006

    Dos temores...

    "Seu corpo não conseguia acompanhar sua mente, e sentia as conseqüências. Desejava não ter corpo na maior parte do tempo, achava desnecessário. Era peso morto, constantemente carregado precisando ser mantido, cuidado. E dificultava o ato de pensar. Queria se prender somente a criação, pura e simples. Nada de exteriorizar, registrar, demarcar um espaço para o que não assume localização exata. Existir somente, sem explicações. Outra tentativa vã... Inútil desejar qualquer coisa. Ultimamente, tudo era inútil... Eram seus pensamentos assumindo formas, ganhando denominações, pesando sobre seu corpo. Névoa formada ao seu redor, densa, tensa, ar gélido penetrando os pulmões, tornando o corpo e a alma cada vez mais frios, tão real que teme esticar os braços e sentir que tocou um muro intransponível. Temia descobrir que aquele obstáculo intransponível era ela..."

    terça-feira, outubro 03, 2006

    25 de outubro de 2005

    "Sinto-me diferente do que já fui... As palavras são as mesmas, mas regem outra existência, outra paisagem, outra escrita, outra vida, outra mente, outra visão, outra percepção, outra parte, outro todo, outro mundo, em um mesmo corpo... Sinto-me diferente do que já sou... Ironicamente perdida no labirinto que criei para que não me encontrassem, encontro-me perdidamente criada na ironia do meu labirinto... Sim, as palavras são as mesmas, mas regidas por minhas mãos elas encontraram novas formas... Mas minhas mãos, regidas pelas palavras, encontraram-me diferentemente, parte do todo e não mais todo da parte... Poderiam as palavras mudar, impregnadas pela vida pequena e mesquinha? Tão óbvio que não faz sentido... Sinto-me diferente do que já serei..."

    segunda-feira, outubro 02, 2006

    Do querer...

    "Silêncio... Silêncio do corpo e da alma. Não queria palavras, sons, imagens, nada. Queria a ausência de tudo. Olhos fechados na escuridão, esperando que sumisse toda a presença física, inclusive e principalmente a sua. Esperava também nesse exercício de esquecimento, esquecer que era gente, perder tudo, mesmo que durante um ínfimo intervalo de tempo. Esperava não resumir nada ao espaço e ao tempo, não sentir nada, não pensar nada, não ser... Mas não sendo, algo seria. Ou não? Jogando pensamentos no chão, não queria filosofar sua existência, queria ser inexistente, não queria querer... Momento em branco que perdurasse, e nada ficasse impresso. Em branco ou em preto. Ausência de tudo e de todos. Mas não podia..."

    domingo, outubro 01, 2006

    Da ignorância...

    "Ele deitou-se em sua cama, no escuro do seu quarto e ficou a observar as sombras que se formavam no teto. Tantas formas, que não conseguia mais distinguir o que era real e o que se formava na sua imaginação. Sentiu-se criança novamente, que nas noites insones, acompanhava o movimento bruxuleante das luzes da rua que refletiam no teto do seu quarto e o faziam imaginar mundos de lutas com inimigos mortais para salvar a sua amada. Escutava do outro lado da porta, as vozes abafadas de seus pais, que colocavam ele e seus irmãos para dormir, e conversavam assuntos de adultos. Tentava sempre escutar o que eles diziam, imaginava toda uma história para as palavras perdidas que conseguia distinguir, e se perdia novamente em novos mundos, que o faziam adormecer ao som de imagens fantásticas.
    Havia muito tempo que não recordava essas brincadeiras solitárias. Lembrava-se das tardes longas que passava com seus irmãos e amigos de infância na casa de seus avós. Seu saudosismo sempre se restringiu a essas lembranças com a companhia de outros. Nunca recordava as diversas conversas que tinha consigo mesmo em uma língua só dele durante as horas que antecediam seu sono. Tanta coisa que ele havia deixado lá no fundo da sua memória, pegando a poeira dos anos, esquecida - seria proposital? - até aquela noite.
    (...) Ele agora se via revirando lembranças há muito esquecidas, desejando momentos de isolamento, somente ele e ele, tentando compreender o turbilhão de pensamentos que sempre existiu, mas que ele sempre ignorou. Sempre focava seu olhar para o agora, para fora, análise do mundo ao seu redor, mais ações do que pensamentos, viver intensamente sempre. Agora queria se fechar como concha no fundo do mar, se conhecer, entender o que se passava dentro dele. Sensação incômoda essa, ele sentia. Analisar seus pensamentos, suas ações, expansão para dentro. De onde surgia essa vontade, essa necessidade, que nunca se fizera presente, pungente?
    Não, era sentir-se demais. Sufocante. Pesado. Queria sentir-se leve. Levantou-se e foi bater na porta dela. Sua vizinha abriu, assustada. Logo depois, meias palavras, sorrisos do lado de dentro e do lado de fora. Alguns passos, ainda deixando no ar o peso de si, desfazendo-se com o fechar da porta e o corredor vazio de corpos e cheio de impressões.
    Era leve novamente..."
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